4. A redução do perispírito - Na noite seguinte, o grupo voltou à casa de Amaro, onde Odila os recebeu, contente e gentil. Júlio dormia. Na verdade, ele não mais acordara. Parecia que o reencarnante desaparecia pouco a pouco, na constituição orgânica de Zulmira, como se a gestante fosse um filtro miraculoso a absorvê-lo. Odila estava satisfeita e esperançosa, porque as aflições e os gemidos do filho lhe haviam dilacerado o coração. O renascimento representava, por esse motivo, uma bênção para as inquietantes responsabilidades maternais de que se via detentora. Júlio estava muito diferente. Seu corpo sutil denotava espantosa transformação, pois adelgaçara-se de maneira surpreendente. Tinha-se a impressão de que ele e Zulmira, alma com alma, se fundiam um no outro. A segunda esposa de Amaro modificara-se de forma sensível. Revelava-se agora mais alegre e mais cônscia das obrigações que lhe competiam. A transfusão fluídica era ali evidente. O organismo materno parecia um alambique destinado a sutilizar as energias do reencarnante, para restituí-las, decerto, a ele mesmo, na formação do novo envoltório. Clarêncio elucidou: "A reencarnação, tanto quanto a desencarnação, é um choque biológico dos mais apreciáveis. Unido à matriz geradora do santuário materno, em busca de nova forma, o perispírito sofre a influência de fortes correntes eletromagnéticas, que lhe impõem a redução automática. Constituído à base de princípios químicos semelhantes, em suas propriedades, ao hidrogênio, a se expressarem através de moléculas significativamente distanciadas umas das outras, quando ligado ao centro genésico feminino experimenta expressiva contração, à maneira do indumento de carne sob carga elétrica de elevado poder. Observa-se, então, a redução volumétrica do veículo sutil pela diminuição dos espaços inter-moleculares. Toda matéria que não serve ao trabalho fundamental de refundição da forma é devolvida ao plano etereal, oferecendo-nos o perispírito esse aspecto de desgaste ou de maior fluidez". Ali, os princípios organogênicos essenciais do perispírito já se encontravam reduzidos na intimidade do altar materno, e, à maneira de um ímã, iam aglutinando sobre si os recursos de formação do novo vestuário de carne que lhe seria o vaso próximo de manifestação, enquanto a forma, em ativo processo de dissolução, rarefazia-se. (Cap. XXIX, págs. 178 a 180)
5. A comunhão entre mãe e filho - Clarêncio comparou aquele fenômeno à desencarnação, quando o corpo, que então parece dormir, na realidade restitui à Natureza as unidades químicas que o compõem. A grande diferença é que o desencarnante, mesmo quando em deploráveis condições de sofrimento, avança para a libertação relativa, ao passo que o reencarnante volta às teias da matéria densa. E' por isso que, conduzidos à reconstituição orgânica, o homem revive, nos primeiros tempos da organização fetal, todo o pretérito biológico. Esses princípios funcionam igualmente para os animais? Clarêncio disse que sim. Todos nos achamos na grande marcha de crescimento para a imortalidade. Nas linhas infinitas do instinto, da inteligência, da razão e da sublimação, permanecemos todos vinculados à lei do renascimento como inalienável condição de progresso. Vivenciamos experiências múltiplas e as recapitulamos, tantas vezes quantas se fizerem necessárias na grande jornada para Deus. "Crisálidas de inteligência nos setores mais obscuros da Natureza -- asseverou o instrutor -- evolvem para o plano das inteligências fragmentárias, onde se localizam os animais de ordem superior que, por sua vez, se dirigem para o reino da consciência humana, tanto quanto os homens, pouco a pouco, se encaminham para as gloriosas esferas dos anjos". Hilário pediu a Clarêncio explicar, da forma mais simples possível, como se dava, naquele momento, a comunhão fisiopsíquica de Zulmira e Júlio, e o Ministro, após refletir alguns momentos, disse: "Imaginemos um pêssego amadurecido, lançado à cova escura, a fim de renascer. Decomposto em sua estrutura, restituirá aos reservatórios da Natureza todos os elementos da polpa e dos demais envoltórios que lhe revestem os princípios vitais, reduzindo-se no imo do solo ao embrião minúsculo que se transformará, no espaço e no tempo, em novo pessegueiro". O ensinamento não podia ser mais lógico e preciso. (Cap. XXIX, págs. 180 e 181)
6. A questão da hereditariedade - O exemplo dado por Clarêncio explica por que, na maioria dos casos, as crianças desencarnadas reclamam período de tempo mais ou menos longo para demonstrarem crescimento mental. "Isso acontece com a maioria -- informou o Ministro --, de vez que há exceções na regra. Em muitas circunstâncias, semelhante imposição não existe. Quando a mente já desenvolveu certas qualidades, aprimorando-se em mais altos degraus de sublimação espiritual, pode arrojar de si mesma os elementos indispensáveis à composição dos veículos de exteriorização de que necessite em planos que lhe sejam inferiores". "Nesses casos, o Espírito já domina plenamente as leis de aglutinação da matéria, no campo de luta que nos é conhecido, e, por esse motivo, governa o fenômeno da própria reencarnação sem subordinar-se a ele." Embora doloroso, o problema de Júlio era educativo. Tendo fracassado na carne, na carne encontraria caminho ao próprio reajuste. Hilário perguntou sobre a questão da hereditariedade em tais casos. Júlio renasceria sem a moléstia que o apoquentava, por herdar fatalmente os característicos biológicos dos pais? Clarêncio informou que a hereditariedade, tal como é aceita no mundo, tem os seus limites. Filhos e pais guardam, sempre, afinidade magnética entre si. Assim, os pais fornecem determinados recursos ao reencarnante, mas esses recursos estão condicionados às necessidades da alma que lhes aproveita a cooperação, porque, no fundo, "somos herdeiros de nós mesmos". "Assimilamos as energias de nossos pais terrestres, na medida de nossas qualidades boas ou más, para o destino enobrecido ou torturado a que fazemos jus, pelas nossas conquistas ou débitos que voltam à Terra conosco, emergindo de nossas anteriores experiências", ajuntou Clarêncio. Júlio transportaria consigo a mesma enfermidade, à maneira de alguém que, em se mudando de residência, não modifica o quadro orgânico. Durante a gravidez, a mente da criança estaria associada à mente materna, influenciando a formação do embrião. Assim, todo o cosmo celular do novo corpo ficaria impregnado pelas forças do pensamento enfermiço do reencarnante, renascendo Júlio com as deficiências de que ainda era portador, embora favorecido pelo material genético dos pais, nos limites da lei de herança, para a constituição do novo envoltório. O Ministro, então, concluiu: "Como vemos, na mente reside o comando. A consciência traça o destino, o corpo reflete a alma. Toda agregação de matéria obedece a impulsos do espírito. Nossos pensamentos fabricam as formas de que nos utilizamos na vida". (Cap. XXIX, págs. 181 a 183)
7. Uma amigdalite ameaça a gestação - Passado um mês, Odila procurou Clarêncio solicitando ajuda. Ela estava triste, atormentada. Zulmira, incompreensivelmente para ela, havia contraído perigosa amigdalite e sofria muito. Baldados os seus esforços por liberar a gestante de semelhante aborrecimento físico, Odila inspirou Amaro a trazer um médico, mas temia que este, ignorando a gravidez, pudesse aplicar-lhe recursos impróprios. Clarêncio e seus amigos foram, de noite, à casa de Zulmira, encontrando-a no leito, em aflitiva prostração. Cabelos em desalinho, olheiras arroxeadas e faces rubras de febre, parecia aguardar a chegada de alguém que a auxiliasse a debelar a crise. A supuração das amígdalas poluíra-lhe o hálito e lhe impunha dores lancinantes. Apesar do carinho do esposo e de Evelina, a mulher que trinta dias antes estava corada e bem disposta, revelava-se então profundamente abatida. Clarêncio aplicou-lhe recursos magnéticos, detendo-se de modo particular na região do cérebro e na fenda glótica. A doente acusou melhoras imediatas; reabilitou-se o movimento circulatório; a febre decresceu, propiciando-lhe repouso, e o sono reparador surgiu por fim, favorecendo-lhe a recuperação. Qual seria a causa da moléstia insidiosa, que tão violenta se apresentara? A esta pergunta de Hilário, Clarêncio respondeu: "A questão é sutil. A mulher grávida, além da prestação de serviço orgânico à entidade que se reencarna, é igualmente constrangida a suportar-lhe o contacto espiritual, que sempre constitui um sacrifício quando se trata de alguém com escuros débitos de consciência. A organização feminina, durante a gestação, sofre verdadeira enxertia mental. Os pensamentos do ser que se acolhe ao santuário íntimo, envolvem-na totalmente, determinando significativas alterações em seu cosmo biológico. Se o filho é senhor de larga evolução e dono de elogiáveis qualidades morais, consegue auxiliar o campo materno, prodigalizando-lhe sublimadas emoções e convertendo a maternidade, habitualmente dolorosa, em estação de esperanças e alegrias intraduzíveis, mas no processo de Júlio observamos duas almas que se ajustam nas mesmas dívidas e na mesma posição evolutiva". Eles influenciavam-se, mutuamente. (Cap. XXX, págs. 184 a 186)
8. Um processo de modelagem - Clarêncio fez longa pausa, tornou aos passes e depois continuou: "Se Zulmira atua, de maneira decisiva, na formação do novo veículo do menino, o menino atua vigorosamente nela, estabelecendo fenômenos perturbadores em sua constituição de mulher. A permuta de impressões entre ambos é inevitável e os padecimentos que Júlio trazia na garganta foram impressos na mente maternal, que os reproduz no corpo em que se manifesta. A corrente de troca entre mãe e filho não se circunscreve à alimentação de natureza material; estende-se ao intercâmbio constante das sensações diversas. Os pensamentos de Zulmira guardam imensa força sobre Júlio, tanto quanto os de Júlio revelam expressivo poder sobre a nova mãezinha. As mentes de um e de outro como que se justapõem, mantendo-se em permanente comunhão, até que a Natureza complete o serviço que lhe cabe no tempo. De semelhante associação, procedem os chamados sinais de nascença. Certos estados íntimos da mulher alcançam, de algum modo, o princípio fetal, marcando-o para a existência inteira. E' que o trabalho da maternidade assemelha-se a delicado processo de modelagem, requisitando, por isso, muita cautela e harmonia para que a tarefa seja perfeita". Na seqüência, o Ministro levou a efeito diversas operações magnéticas de auxílio à cavidade pélvica, afirmando a necessidade de socorro ao útero, em vista do complicado desenvolvimento do reencarnante. Hilário aludiu, naquele instante, à transformação do sistema nervoso que se observa na mulher grávida. Muitas vezes, a gestante revela decréscimo de vivacidade mental e, não raro, enuncia propósitos da mais rematada extravagância, havendo mulheres que adquirem antipatias súbitas e outras que se recolhem a fantasias injustificáveis. Diante da observação feita por Hilário, o instrutor elucidou: "A explicação é muito clara. A gestante é uma criatura hipnotizada a longo prazo. Tem o campo psíquico invadido pelas impressões e vibrações do Espírito que lhe ocupa as possibilidades para o serviço de reincorporação no mundo. Quando o futuro filho não se encontra suficientemente equilibrado diante da Lei, e isso acontece quase sempre, a mente maternal é suscetível de registrar os mais estranhos desequilíbrios, porque, à maneira de um médium, estará transmitindo opiniões e sensações da entidade que a empolga". (Cap. XXX, págs. 186 e 187)
9. As náuseas da gravidez - Hilário lembrou ter observado na Terra a inopinada aversão de muitas gestantes contra os próprios maridos. Clarêncio explicou que isso ocorre "sempre que um inimigo do pretérito volta à carne, a fim de resgatar débitos contraídos para com aquele que lhe servirá de pai". E se a animosidade do reencarnante for com a mãe? Nesse caso, surgirão obstáculos à reencarnação? Clarêncio respondeu: "De modo algum. A esposa, por devotamento ao companheiro, cede facilmente à necessidade da alma que volta ao reduto doméstico para fins regeneradores e, em se tratando de alguém com intensa afinidade junto ao chefe do lar, vê-se o marido docemente impulsionado a oferecer maior coeficiente afetivo à companheira, de vez que se sente envolvido por forças duplas de atração. Sob dobrada carga de simpatia, dá muito mais de si mesmo em atenção e carinho, facilitando a tarefa maternal da mulher". Passados alguns dias, Odila informou a Clarêncio que Zulmira atravessava nova crise orgânica. Vômitos incoercíveis perturbavam-na cruelmente; não tolerava a mais leve alimentação; o sistema digestivo apresentava alterações profundas; os recursos médicos eram infrutíferos. Clarêncio agiu imediatamente, porquanto as náuseas repetidas provocavam a gradativa incursão da anemia. Submetendo-a a passes magnéticos de longo curso, o instrutor informou que a gestante apresentaria melhoras. Hilário indagou o porquê das náuseas tão comuns durante a gravidez. O Ministro respondeu dizendo que no futuro a ciência ajudaria a mulher na defesa contra essa espécie de aborrecimento orgânico, que, no fundo, é de essência espiritual. O organismo materno, absorvendo as emanações da entidade reencarnante, funciona como um exaustor de fluidos em desintegração, fluidos esses que nem sempre são aprazíveis ou facilmente suportáveis pela sensibilidade feminina. Daí os engulhos freqüentes, de tratamento até então muito difícil. Zulmira foi melhorando e, meses depois, Odila foi até Clarêncio anunciar, com grande júbilo, que o menino tornara à luz terrestre, conservando novamente o nome Júlio. (Cap. XXX, págs. 187 a 189)
10. O menino cai doente - O pequeno Júlio desenvolvia-se como flor de esperança no jardim do lar, todavia era um menino mirrado, enfermiço, por trazer dolorosa ferida na glote, que lhe dificultava a nutrição. Em vésperas do primeiro aniversário de nascimento, quando já começava a falar alguma coisa, nova luta surgiu. O inverno rigoroso trouxera vasto surto de gripe. A tosse e a influenza compareciam pertinazes em todos os recantos, quando, num dia de grande trabalho, Odila foi à busca de Clarêncio. Júlio, assaltado por teimosa amigdalite, jazia prostrado, febril. O Ministro e seus companheiros chegaram à casa de Amaro no momento em que o médico da família efetuava meticuloso exame. A garganta do menino apresentava extensa placa branquicenta e a respiração se fazia angustiada, sibilante. Clarêncio colocou a destra na fronte do médico, compelindo-o a refletir com maior atenção. Após um longo silêncio, o clínico pediu que chamassem o marido, enquanto ele buscaria a ajuda de um pediatra. Zulmira conteve a custo as lágrimas que lhe borbulhavam dos olhos, enquanto o médico saiu à procura do colega e Evelina correu para avisar seu pai. (Cap. XXXI, págs. 190 e 191)
11. Mário Silva revê Antonina - A sós com o filho, Zulmira abraçou-se ao doentinho e, chorando, ciciou: "O' meu Deus, com tanto amor recebi o filho que me enviaste!... Não me deixes agora sem ele, Senhor!..." Clarêncio informou então: "A difteria está perfeitamente caracterizada. A deficiência congenial da glote favoreceu a implantação dos bacilos. E' imprescindível o socorro urgente". Amaro chegou, desolado, e logo depois o pediatra e o clínico submeteram o petiz a prolongado exame. Suspeitando que o menino estivesse com crupe, providenciou desde logo o material necessário aos exames laboratoriais. Se a hipótese se confirmasse, enviaria um enfermeiro de confiança para a aplicação do soro adequado. Clarêncio pediu a André e Hilário que acompanhassem o pediatra, enquanto ele ficaria junto ao enfermo. Chegados a um grande hospital, eles tiveram uma surpresa: o enfermeiro Mário Silva (Esteves no passado) palestrava com dona Antonina (a ex-cantora Lola Ibarruri), que acomodava ao colo a pequena Lisbela, pálida e ofegante. A jovem mulher aguardava o especialista, trazendo a menina à consulta. Amparadas pelo enfermeiro, francamente atraído para a simpática visitante, mãe e filha tiveram acesso a gabinete particular, onde o médico diagnosticou uma pneumonia. Antonina foi aconselhada a voltar, de imediato, ao lar, para a medicação da filha; a penicilina deveria ser administrada sem qualquer demora. Mário Silva, demonstrando imenso carinho pela criança, prontificou-se a assisti-la, pessoalmente. O chefe olhou o relógio e aquiesceu, ressalvando: ele poderia cooperar com Antonina, mas era indispensável seu concurso em bairro distante, às vinte e duas horas. André e Hilário retornaram então à casa de Amaro, para relataram o acontecido ao Ministro, que os escutou com interesse. (Cap. XXXI, págs. 192 e 193)
12. Em casa de Antonina - Clarêncio disse-lhes que não havia tempo a perder. A lei estava reaproximando os amigos do passado e Mário precisaria fortalecer-se para exercitar o perdão. Seus raios de ódio poderiam apressar a morte do menino Júlio. O grupo rumou então até à casa de Antonina, onde Mário, após atender à menina enferma, contemplava a dona da casa, perguntando a si mesmo onde vira antes aquele rosto, que julgava haver conhecido anteriormente. O enfermeiro sentia-se ali como se fora em sua própria casa, e disse em viva voz estar experimentando uma paz que há muito não conhecia, com o que Antonina se regozijou, sorrindo. Notando que Haroldo e Henrique, filhos de Antonina, gostavam de futebol, ele deu curso a animada conversa sobre o assunto, conquistando-lhes o carinho. Preparando o café, a mãe participava de longe da palestra, que se tornou animada. Foi aí que ela disse ao visitante ter enviuvado. Mário ficou contente com essa informação. Às oito em ponto, Antonina lhe disse: "Sr. Mário, hoje temos nosso culto evangélico. Quer ter a bondade de partilhá-lo?" O rapaz concordou, de imediato. A reunião foi feita em torno de Lisbela, que não desejava perder o benefício das orações. Henrique fez a prece inicial, pedindo a Jesus a saúde da irmãzinha doente, com enternecedora súplica. Mário foi convidado a abrir o Novo Testamento, o que fez, magnetizado por Clarêncio, que lhe tocou o busto e as mãos, influenciando-o para a descoberta do texto adequado, que recaiu no versículo 25 do capítulo 5 do Evangelho segundo Mateus: "Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto te encontras a caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz e o juiz te entregue ao oficial para que sejas encerrado na prisão". (Cap. XXXI, págs. 194 a 196)
13. O culto evangélico no lar - Antonina, com a presença do enfermeiro, se revelou mais retraída; por isso, pediu a interpretação dos meninos que, de modo ingênuo, reportando-se às experiências da escola, afirmaram que sempre adquiriam a paz buscando desculpar as faltas dos companheiros. Haroldo disse que sua professora sempre sorria contente, quando lhe via a boa vontade e Henrique salientou que aprendera no culto do lar que era muito mais agradável o esforço de viver em harmonia com todos. A palestra parecia que ia esmorecer, quando Clarêncio, aproximando-se de Antonina, impôs-lhe a destra sobre a fronte. A senhora perguntou então ao filho Haroldo como devemos interpretar um inimigo em nossa vida. O menino, sem pestanejar, respondeu: "Mãezinha, a senhora nos ensinou que conservar um inimigo em nosso caminho é o mesmo que manter uma ferida perigosa em nosso corpo". Antonina completou: "A definição foi bem lembrada; sem a compreensão fraterna que nos garante o culto da gentileza, sem o perdão que olvida todo mal, a existência na Terra seria uma aventura intolerável. Além disso, quando Jesus nos ditou a lição que recordamos hoje, indubitavelmente considerava que a razão nunca vive inteira ao nosso lado. Se fomos ofendidos, em verdade também ofendemos por nossa vez. Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem". E a dona da casa concluiu: "Quando abraçamos o ideal do bem, compete-nos tentar, por todos os meios ao nosso alcance, a justa conciliação com todos os que se encontrem conosco em desarmonia, prestando-lhes serviço para que renovem a conceituação a nosso respeito. Mais vale para nós o acordo pacífico que a demanda mais preciosa, porque a vida não termina neste mundo e é possível que, buscando a justiça em nosso favor, estejamos cristalizando a cegueira do egoísmo em nosso próprio coração, caminhando para a morte com aflitivos problemas. Coração que conserva rancor é coração doente. Alimentar ódio ou despeito é estender inomináveis padecimentos morais no próprio espírito". Mário Silva estava pálido. Aquelas conclusões feriam-lhe, fundo, o modo de ser. E na sua tela mental, sem que ele pudesse deter as suas reminiscências, apareceram Amaro e Zulmira, como seus desafetos que ele, no âmago do espírito, não conseguia desculpar. (Cap. XXXI, págs. 196 e 197)
14. Mãos que curam não podem ferir - Ele os odiava; sim, odiava-os -- pensou de si para consigo --; jamais suportaria um acordo com semelhantes adversários. No entanto, a sinceridade de Antonina o encantava. Aquela pobre mulher, cercada de três filhinhos, superando talvez obstáculos dos mais inquietantes para viver, constituía um exemplo de quanto podia edificar o espírito de sacrifício. Em nenhum lugar encontrara tanta fé e, além disso, laços de vigorosa afinidade impeliam-no para ela, cuja palavra lhe impunha indefinível bem-estar... Ele então, fitando-a, indagou: "A senhora julga que devemos procurar a conciliação com qualquer espécie de inimigos?" Ela disse: "Sim". "E quando os adversários são de tal modo inconvenientes que a simples aproximação deles nos causa angústia?" A mulher ponderou: "Entendo que há sofrimentos morais quase intoleráveis, entretanto, a oração é o remédio eficaz de nossas moléstias íntimas. Se temos a infelicidade de possuir inimigos, cuja presença nos perturba, é importante recorrer à prece, rogando a Deus nos conceda forças para que o desequilíbrio desapareça, porque então um caminho de reajuste surgirá para nossa alma". E ajuntou: "Todos necessitamos da alheia tolerância em determinados aspectos de nossa vida". Os olhos do enfermeiro cintilaram e ele insistiu: "E quando o ódio nos avassala, ainda mesmo quando não desejemos?" Antonina respondeu: "Não há ódio que resista aos dissolventes da compreensão e da boa vontade. Quem procura conhecer a si mesmo, desculpa facilmente..." Silva ficou pálido e Antonina, amparada por Clarêncio, rematou: "Um homem, porém, na sua tarefa, é um missionário do amor fraterno. Quem socorre os doentes, penetra a natureza humana e entra na posse da grande compaixão. As mãos que curam não podem ferir..." Em seguida, o primogênito da casa fez a prece final. Após o café, acompanhado de um bolo humilde, Mário retirou-se, devido ao compromisso que o aguardava naquela noite, mas prometeu voltar, porque estava verdadeiramente feliz! (Cap. XXXI, págs. 197 a 199)
15. Mário revê Júlio com aversão - No hospital, a ficha dizia que um menino atacado de crupe exigia socorro imediato. Mário dirigiu-se então ao endereço da criança e, quando foi recebido por Amaro, não pôde ocultar a perplexidade que o assaltara. Identificado pelo ferroviário, que lhe exprimia gentileza e contentamento, ele tartamudeou alguns monossílabos, desapontado, espantadiço... Se soubesse que era aquela casa, ele teria solicitado um substituto, pois a última coisa que queria era reaproximar-se de seus desafetos... Abominava o homem que lhe furtara a noiva e não podia lembrar-se de Zulmira sem se tocar de insólita aversão... Por que salvar-lhe o filho, se tinha desejos de incendiar-lhe a casa? Algo, entretanto, interferia em suas reflexões. Antonina e os filhos, no culto do Evangelho, tomavam-lhe a tela mental. Parecia-lhe ouvir, de novo, a palavra meiga e sincera daquela valorosa mulher: "As mãos que curam não podem ferir..." "Um enfermeiro diligente será, sem dúvida, o irmão de todos..." "A vida não termina neste mundo..." "Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem..." Percebendo sua hesitação, Amaro solicitou em voz súplice: "Entre, Mário! conforta-me reconhecer que receberemos o concurso de um amigo..." O enfermeiro obedeceu maquinalmente e entrou no quarto, perturbado, lívido. Quando viu a mulher que amara apaixonadamente, trazendo o pequenino ao colo, registrou súbita vertigem de revolta. Estranha aflição oprimia-lhe o peito. A volúpia da vingança enceguecia-o... "Zulmira pagar-lhe-ia, caro, a deserção" -- pensava, de olhos fixos na mãe do menino enfermo. Contemplando a criança que a dispnéia agitava, deu curso a incontida animosidade. Parecia que a odiava de longa data e se surpreendeu com isso... "Como podia detestar, assim, um inocente com tanta veemência?" (Cap. XXXII, págs. 200 e 201)