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Ordm; livro - entre a Terra e o céu 4 страница




 

4. Chegará a época das cirurgias psíquicas - No dia seguinte, à meia-noite e 45 minutos, o grupo tornou à casa de Anto­nina. Leonardo ali estava, acocorado a um canto, pensativo. Clarêncio e seus pupilos adensaram-se e o ancião pôde vê-los, começando, no entanto, a gritar por socorro: "Ajudai-me, por amor de Deus! Estou preso! preso!..." O Ministro indu­ziu-o à prece, mas o ancião alegou haver-se esquecido das orações que formulara no mundo, acreditando que prece só vale se deco­rada. Clarêncio orou, então, e o avô de Antonina sossegou. O mentor transmitiu-lhe depois forças magnéticas no campo cerebral e o pa­ciente, muito abatido, pendeu a cabeça sobre o peito, desgovernada e sonolenta. A corrente de força dinamizada no passe magnético arrancá-lo-ia da sombra anestesiante da amnésia, permitindo que sua memória regredisse no tempo, o que, propiciando novos informes, ajudaria a aclarar seu caso. Hilário, surpreso com o fenômeno, indagou se o re­trocesso das recordações pode verificar-se de improviso. "Sem dúvida -- respondeu o instrutor --, a memória pode ser comparada a placa sen­sível que, ao influxo da luz, guarda para sempre as imagens recolhidas pelo espírito, no curso de seus inumeráveis aprendizados, dentro da vida. Cada existência de nossa alma, em determinada expressão da forma, é uma adição de experiência, conservada em prodigioso arquivo de imagens que, em se superpondo umas às outras, jamais se con­fundem". Clarêncio informou então que, em trabalhos de assistência qual aquele, "é preciso recorrer aos arquivos men­tais, de modo a produzir certos tipos de vibração, não só para atrair a presença de companheiros liga­dos ao irmão sofre­dor que nos propomos socorrer, como também para des­cerrar os escaninhos da mente, nas fibras recônditas em que ela detém as suas aflições e feridas invisíveis". "A mente, tanto quanto o corpo físico, pode e deve sofrer intervenções para ree­quilibrar-se", acres­centou Clarêncio, que previu que mais tarde a Ciência evolveria em ci­rurgia psíquica, tanto quanto então já avançara em técnica operatória. "No grande futuro, o médico terrestre desentranhará um labirinto men­tal, com a mesma facilidade com que atualmente extrai um apêndice con­denado", asseverou o mentor. (Cap. XIII, págs. 81 a 83)

 

5. Leonardo reencontra Lola - A observação de Clarêncio fez Hilário lembrar os esforços de Freud, ao que Clarêncio in­formou: "Freud vis­lumbrou a verdade, mas toda verdade sem amor é como luz estéril e fria. Não bastará conhecer e inter­pretar. E' indispensável sublimar e servir. O grande cientista observou aspectos de nossa luta espiritual na senda evo­lutiva e catalogou os problemas da alma, ainda encarcerada nas teias da vida inferior. Assinalou a presença das chagas dolorosas do ser humano, mas não lhes estendeu eficiente bálsamo curativo. Fez muito, mas não o bastante. O médico do porvir, para sanar as desarmo­nias do espírito, precisará mobilizar o remédio salutar da compreensão e do amor, reti­rando-o do próprio coração. Sem mão que ajude, a pa­lavra erudita morre no ar". Acariciando a cabeça do ancião, o Minis­tro pediu-lhe recordasse o passado, onde adquirira o remorso que tanto o martirizava. "Retrocedamos ao ponto inicial de teu sofrimento!... Re­corda! Recorda!...", induziu Clarêncio. Leonardo Pires acordou de olhos transtornados; seu rosto alterara-se de maneira sensível; fi­zera-se mais jovem. Clarêncio explicitou o fenômeno: "Não nos esque­çamos de que temos diante de nós o veículo espiritual, por excelência vibrátil. O corpo da alma modifica-se, profundamente, segundo o tipo de emoção que lhe flui do âmago. Isso, aliás, não é novidade. Na pró­pria Terra, a máscara física altera-se na ale­gria ou no sofrimento, na simpatia ou na aversão. Em nosso plano, semelhantes transformações são mais rápidas e exterio­rizam aspectos íntimos do ser, com facilidade e segurança, porque as moléculas do perispírito giram em mais alto pa­drão vibratório, com movimentos mais intensivos que as moléculas do corpo carnal. A consciência, por fulcro anímico, ex­pressa-se, desse modo, na matéria sutil com poderes plásticos mais avançados". Leonardo ergueu-se e parecia animado de estranha energia, a clamar: "Lola! Lola! estás aqui? Sinto-te a presença... Onde te ocultas? Ouve-me! ouve-me!" Foi en­tão que Antonina, saindo do quarto, avançou ao encon­tro do avô, estampando súbita alteração facial. A mulher fizera-se mais bela, todavia menos serena e menos espiritualizada. Em voz baixa, o Ministro elucidou: "Nossa irmã exige tão so­mente leve auxílio magné­tico para lembrar-se. Basta-lhe a emotividade anormal do reencontro para cair na posição vibra­tória do passado, de vez que ainda não se encontra quitada com a Lei". (Cap. XIII, págs. 83 a 85)

 

6. Lola roga perdão a Leonardo - Aterrada, Antonina rojou-se de joe­lhos aos pés do ancião que se rejuvenescera e gritou seu nome. Leo­nardo, irradiando ódio e padecimento intraduzíveis no olhar, disse: "Enfim!... Enfim!..." e prorrompeu em pranto convulso. Antonina era Lola Ibarruri, a quem Leonardo estava vinculado por laços de imenso amor. A mulher irres­ponsável de ontem hoje era mãe amorosa e digna, que, em face dos delitos do passado, atravessava então aflitivos obstá­culos para viver. Modificada, Antonina implorou a Leonardo: "Compadece-te de mim! compadece-te!" Leonardo então indagou: "Lola, donde vens?", mas a mulher não desejava lembrar o passado. Seguiu-se então um diálogo comovente, em que Leonardo aludiu à sua culpa, infor­mando-lhe que o remorso é qual monstro invisível que alimenta as laba­redas da culpa... Disse-lhe, assim, que por ela, pelo amor que nutria por ela, havia matado, enredando-se no crime. "Amei-te e perdi-me", afir­mou Leonardo. "Trazias nos olhos a traição disfarçada... Oh! Lola, porquê, porquê?..." Ante o doloroso acento com que ele dizia essas pa­lavras, Antonina suplicou-lhe perdão: "Leonardo, perdoa-me!... Sofri muito... Enlouqueceste, é verdade! Mas, a perturbação que me atacou era mais lastimável, mais amargosa!... Sabes o que seja o caminho da mulher aviltada, entre o arrependimento e a aflição? Meditaste, algum dia, no martírio do coração feminino, relegado à penúria e ao aban­dono? Refletiste, alguma vez, na desilusão e na fome da meretriz des­prezada e doente?" (Cap. XIII, pág. 85; cap. XIV, págs. 86 e 87)

 

7. O caso Lola Ibarruri - Diante de Leonardo que confessava, arrepen­dido, ter matado por sua causa, Lola resumiu os próprios erros: "Naquele tempo -- alegou a infeliz --, fiz pior. Exterminei minha alma... Esposa, troquei o altar doméstico pelo mentiroso tablado do gozo fácil; mãe, envileci o mandato que Deus me concedera, crestando todas as flores de minha felicidade!..." Leonardo replicou: "Pudeste, no entanto, realizar o reerguimento que ainda não consegui... Foste, em suma, feliz!..." "Feliz? -- bradou Antonina, semi desesperada -- acusas-me de infiel, quando, como tantos outros, te cansaste de mim, procurando outras novidades e outros rumos!... Vi-me sozinha, enferma, aniquilada... Debalde busquei afogar no vinho do prazer a horrível im­pressão do abismo em que me precipitara, porque, quando o desencanto e a enfermidade me relegaram à margem da vida, acordou-se-me a consciên­cia, inculpando-me, desapiedada... A morte recolheu-me na vala da mi­séria, como um carro de higiene pública reclama o lixo da sarjeta... Estarás habilitado a compreender-me o sofrimento em toda a exten­são?!..." Antonina contou então que por muitos anos vagueou aflita, como ave sem ninho, refugiada no espinheiro de dor, e chegou a esmolar proteção junto daqueles que lhe haviam sido afetos da juven­tude. Nin­guém se recordava dela... Nesse ponto, a mulher tinha a fronte pálida e seu olhar adquirira a assustadiça expressão dos enfer­mos que a febre torna dementados. Passados alguns instantes, ela exi­biu no rosto a surpresa de quem se banha num relâmpago de luz, e con­tinuou: "Não me cabia recolher uma gratidão que eu não semeara... Até que um dia, senti que me chamavas com pensamentos de carinho e de paz... Rememora­vas alguns traços elogiáveis de nossa vida, recompondo na lembrança as festas que organizávamos em favor dos combatentes mu­tilados... As tuas divagações, arrancando ao pretérito as raras remi­niscências felizes que poderíamos identificar, caíram sobre mim como bálsamo refrige­rante... Chorei aliviada e adormeci em tua casa, no aconchego da famí­lia que tiveste a ventura de constituir..." (Cap. XIV, págs. 87 e 88)

 

8. Mecanismo da regressão de memória - Antonina interrompeu a narra­tiva, possuída de insuperáveis impedimentos íntimos, e Clarêncio a auxiliou magneticamente na recuperação das próprias forças. Leonardo, por sua vez, informou-a de que, desde que seu espírito fora ocupado por "ele" (aludindo a Esteves, sua vítima), não mais conseguiu coorde­nar as idéias. "Sim, certamente sou culpado...", afirmou o infeliz. "Tens razão... Podias ter recebido meu concurso... Não me cabia pensar em ti como se fosses tão somente mulher..." Mais calma, Antonina reno­vou-lhe o pedido de perdão. Sofrera muito, aprendera duramente. Procu­rava sinceramente olvidar as ofensas que recebera, da mesma forma que desejava fossem esquecidas as ofensas que praticara contra os ou­tros... "Não me reconduzas, pois, ao passado!...", rogou a mulher re­novada. "Compadece-te de mim!..." Coisa curiosa! Ambos, sob o controle de Clarêncio, detinham-se na posição vibratória em que haviam caído. Por que não se recordavam do parentesco que os reunia? O Ministro es­clareceu: "Encontram-se ambos imobilizados em certo momento do preté­rito, num encontro provocado por influência magnética. Em tais recur­sos utilizados por nosso plano, no tratamento salutar das moléstias da alma, determinados centros da memória se reavivam, ao passo que outros empalidecem. As sensações do presente dão lugar às sensações do pas­sado, para efeito de reajustamento perante o futuro. O fenômeno, po­rém, é momentâneo. A breves minutos, regressarão à consciência normal, melhorados para a boa luta". A assistência prestada por Clarêncio não permitia à jovem senhora avançar na faixa de lembranças. Ao apelo de Antonina, Leonardo arrefecera o ímpeto inicial de de­sesperação. Ele passou então a fitá-la quase que piedosamente, mas, longe de albergar qualquer sentimento positivo de ordem superior, arrancou do próprio íntimo nova onda de cólera, que lhe tingiu a más­cara fisionômica. E, cerrando os punhos, bradou, desvairado: "Sim, sim, entendo-te... Foste suficientemente infeliz... Mas, porque trago comigo o fantasma "dele"? Ter-se-á convertido num demônio intangível para arrasar-me a existên­cia? Estaremos no inferno, sem saber, agarra­dos um ao outro? Viverei dentro dele, quanto ele vive dentro de mim? Porque me não permite o verdadeiro repouso? se procuro dormir, des­perta-me, cruel; se tento olvidar, agiganta-se-me no pensamento!..." Leonardo ergueu para o teto os punhos retesos, ensaiou alguns passos e, desequilibrado, bradou: "Esteves, homem ou diabo, onde estiveres, em mim ou fora de mim, cor­porifica-te e vem!... Estou pronto! acerte­mos a diferença!... Vítima ou carrasco, aparece! que meu pensamento te encontre e te traga!... Que as forças do nosso destino nos reúnam, en­fim, corpo a corpo!..." (Cap. XIV, págs. 88 a 90)

 

9. Esteves aparece - Alguns instantes se passaram, e nova personagem deu entrada na sala. Era José Esteves, parcialmente liberto pelo sono, que favorece tais entendimentos, pela atração magnética mais in­tensivamente facilitada, quando o envoltório de matéria densa exige recuperação. Parecia contar então trinta e cinco anos e não perceber no recinto a presença de outros Espíritos que não fossem Lola e Leo­nardo, a quem reconheceu, estarrecido e agoniado. Aliás, os três pro­tagonistas daquele encontro jaziam repentinamente hipnotizados por vi­brações de assombro e desespero. Leonardo, então, dando um salto para trás, bradou: "Agora! agora, sim!... Vieste mesmo! Vejo-te, fora de minha cabeça, vejo-te como és!... Liquidemos nossa conta... Risca-me dentre os vivos ou eu te riscarei!..." Antonina pedia-lhe piedade, e Esteves, sacudido pelas próprias reminiscências, respondeu-lhe, agres­sivo: "Conheço-te e odeio-te!... Assassino, assassino!..." Como as duas entidades se engalfinhariam, sem dúvida, como animais enfureci­dos, Clarêncio interferiu, imobilizando-os prontamente. Tocado pelo Ministro, Esteves enxergou os benfeitores espirituais, acalmando-se. O Ministro, dirigindo-se então a Leonardo com voz segura, concitou: "Meu amigo, extirpa da mente a idéia do crime. Achas-te cansado, enfermo. Recebe­rás a medicação de que necessitas". Num átimo, Clarêncio ausentou-se e regressou trazendo consigo dois amigos espirituais que transportaram Leonardo, semi-inconsciente, para uma casa de reajuste, onde mais tarde receberia a assistência de André e seus amigos. Este­ves foi aco­modado numa poltrona e Antonina restituída a seu quarto, mas foi grande a dificuldade para recompô-la em espírito e religá-la à vesti­menta carnal, quase inerte. Por mais de duas horas ela exigiu atenção das entidades e, mesmo assim, quando acordou estava exausta e entonte­cida. Antonina acreditou-se liberta de estranho pesadelo e, sem saber explicar a razão, continuava soluçando... (Cap. XIV, págs. 90 a 92)

 

10. O sonho - Esteves, amedrontado, suplicou que não o prendessem, porque ele fora a vítima, e retirou-se para a via pública, vagarosa­mente, regressando ao seu lar. Clarêncio e os demais seguiram-no a pe­quena distância. Novo dia se iniciava: eram cinco horas e trinta minu­tos. Esteves entrou em seu apartamento e se esforçou por reaver o corpo físico, contando para isso com a ajuda afetuosa de Clarêncio, com o que ele pôde recuperar a calma natural. Quinze minutos depois, o despertador tilintou e o rapaz acordou, guardando a impressão de ter tido um mau sonho. Ele se chamava então Mário Silva, enfermeiro de profissão. Na sala do apartamento, sua mãe o saudou, carinhosa, e ele, para explicar o semblante carregado logo cedo, relatou-lhe o sonho que tivera. Al­guém o chamara, a distância, em alta voz. Pensando tratar-se de algum doente em estado grave, ele foi, mas, ao invés de topar um doente, viu-se numa cela mal iluminada e úmida. "Era um perfeito cubí­culo de prisão, onde me surpreendi encarcerado, de repente, junto de um crimi­noso de mau aspecto e de infortunada mulher em pranto...", re­latou ele. "Senti tanta simpatia pela moça desventurada, quanta aver­são pelo réu de medonha catadura. Tive, porém, a impressão nítida de que nos conhecíamos. Um misto de ódio e sofrimento me tomou de as­salto, junto deles, principalmente ao lado do infeliz, cujo olhar se me afi­gurava cruel..." (Cap. XV, págs. 93 a 95)

 

11. A explicação do sonho - Mário explicou à sua mãe não entender por que não se retirara daquele lugar, visto que sua vontade era agredir o homem que o repelia, ao mesmo tempo em que desejava acariciar a infe­liz mulher. Eles só não se engalfinharam numa luta de resultados im­previsíveis, porque apareceu de repente um delegado policial, seguido de dois guardas. Seu adversário fora então conduzido para fora e a jo­vem levada para o interior do cárcere... "Depois... depois, não con­sigo precisar as recordações... Sei apenas que me pus a correr, em fuga para nossa casa, de vez que os policiais se mostravam igualmente dispostos a recolher-me", concluiu o enfermeiro, explicando com isso o seu abatimento. A mãe lhe perguntou: "Meu filho, o sonho terá alguma relação com a nossa Zulmira? A mulher com quem simpatizou não seria, acaso, nossa velha amiga, e o homem que lhe inspirou tanta repugnância não poderia ser interpretado como sendo o esposo dela?" Mário não soube responder e alegou que nunca mais tivera notícia de Zulmira, sa­bendo apenas que ela morava no mesmo bairro e que o marido era ferro­viário de importância. A mãe ponderou: "Nunca pude entender-lhe a ati­tude. Tantos anos de convivência, tantos projetos de felicidade!... Trocar tudo, assim, por um viúvo, acompanhado de dois filhos!..." O rapaz, denotando certa amargura, observou: "Ora, mamãe, evitemos re­cordações sem proveito. Zulmira não deve reaparecer em minha memória e esse Amaro que ela desposou é um ponto negro em meu coração. Creio que o melhor sentimento para eles dois em minha vida íntima é o ódio com que os reuno em minha lembrança. Não desejo revê-los e, francamente, se eu soubesse que residiam aqui, em nossa vizinhança, decidiria nossa transferência para outro rumo..." (Cap. XV, págs. 95 e 96)

 

12. Um triângulo amoroso - A mãe de Mário Silva tinha a convicção de que as pessoas, no sono, procuram os afetos ou os desafetos do ca­minho, mas o filho não se ligava a isso e, visivelmente enfadado, bei­jou-a e saiu para o hospital, onde o serviço cirúrgico de duas crian­ças, às oito em ponto, o aguardava. André estava surpreso! Zulmira, a quem Mário se referiu, seria a esposa de Amaro? Clarêncio elucidou o caso: "Realmente, o nosso novo amigo foi noivo de Zulmira, a senhora obsidiada que conhecemos. Pretendia desposá-la, mas foi preterido no coração dela por Amaro, que lhe deve assistência e carinho. O passado fala do presente. Acham-se enredados numa teia de compromissos que lhes reclamam resgate". Nesse comenos, a mãe do enfermeiro, devotada e sensível, meditando no sonho do filho, enquanto varria a casa, orava por ele, rogando a Jesus o abençoasse. Ela sabia o quanto seu filho sofreu ao perder a noiva querida e receava vê-lo de novo atormentado e vencido... O pensamento em prece escapava-lhe da cabeça, como tênue esguicho de luz. Clarêncio abeirou-se dela e transmitiu-lhe forças calmantes, sossegando-lhe o coração. Depois, explicou aos pupilos que já a conhecia: "Nossa irmã Minervina é velha conhecida. Recebeu nos braços meia dúzia de filhos que tem sabido conduzir, admiravelmente. Coração abnegado, alma rica de fé". André pretendia seguir Mário Silva, para obter novos informes acerca do caso que começava a tornar-se fasci­nante. Clarêncio, contudo, explicou-lhe (pela segunda vez nesta história) que não é bom incomodar os encarnados durante o dia, provocando eluci­dações que seriam desagradáveis e fora de ocasião. "Aguardemos a noite -- propôs o Instrutor --, porque enquanto o corpo físico se refaz a alma invariavelmente procura o lugar ou o objeto a que imanta o cora­ção". (Cap. XV, págs. 97 e 98)

 

13. Nossa vida mental é a verdadeira - Ò noite, o grupo retornou à casa de Mário Silva, o enfermeiro, que, estirado nos lençóis, debalde procurava dormir. O sonho da véspera castigava-lhe o pensamento. Ele julgava ter visto ali Amaro, que se casara com Zulmira, companheira de infância do enfermeiro, a quem este amara verdadeiramente e cuja perda considerava irreparável. Conhecia Amaro de relance, mas o su­ficiente para detestá-lo, com todas as reservas de ódio de que se sen­tia capaz. Essas idéias e dúvidas o atormentavam, e Mário passou a acalentar, en­tão, o desejo de voltar ao sonho da noite anterior, para tentar uma solução. A figura de Amaro, seu rival, cres­cia-lhe na mente. "Se as almas podiam efetivamente reencontrar-se, fora do corpo -- prosseguia Mário em suas divagações --, decerto con­seguiria rever o adversário e revidar... Se fora invocado em sonho, era lícito invocar quem qui­sesse... Chamaria o renegado esposo de Zul­mira a explicar-se. Concen­traria nele o poder do pensamento. Buscá-lo-ia onde estivesse". O Mi­nistro, que o contemplava compadecido, observou: "A paixão cega sem­pre. Nossa vida mental é a nossa vida verdadeira e, por isso, quando a paixão nos ocupa a fortaleza íntima, nada vemos e nada registramos se­não a própria perturbação". Em seguida, aplicou passes balsamizantes sobre o rapaz, que, qual se houvera sorvido brando anestésico, relaxou os nervos e descansou o corpo, despren­dendo-se parcialmente do veículo denso. Espantadiço e tateante, sem notar ali a presença de Clarêncio e dos demais, Mário vagueou pelo quarto, chamando a atenção de André o seu corpo espiritual, que se apresentava extremamente condensado. (Cap. XVI, págs. 99 e 100)

 

14. Mário evoca e afronta seu rival - Mário Silva detinha-se em afli­tivos quadros íntimos. Qual ocorria com Leonardo Pires, ele padecia angus­tioso complexo de fixação. Evidente que seu caso particular era suavi­zado pelas lutas da carne, mas mesmo isso não era bastante para diluir a obcecante recordação do rival. A mágoa feria-o profundamente. Se as tarefas de cada dia, na Terra, o distraíam, quando se via espiritual­mente a sós dava curso ao ódio coagulado, desde muito, no coração. De fato, Mário desceu à rua, como um louco, e passou a gri­tar, com voz estridente: "Amaro, ladrão! Amaro, usurpador! aparece! Se tens digni­dade, afronta-me a vingança!... Não tremerei!... Onde ocul­taste a mu­lher que eu amo?! Responde, responde!..." Dizendo isto, Má­rio cami­nhava semi-ébrio, sem direção, arremessando tais palavras no ar, com veemência e segurança. Eis que, então, surgiu alguém que vinha ao seu en­contro, em plena via pública. Era Amaro, que, desligado par­cialmente do corpo denso, copiando o impulso do ferro atraído pelo ímã, atendia ao chamado. A princípio, defrontaram-se altivamente, mas, logo após, com as maneiras de homem mais educado, Amaro recuou, reve­lando-se pre­ocupado em evitar conflitos. O enfermeiro, porém, de ânimo agitado, bradou: "Não te acovardes, bandido! Não fujas!... Temos con­tas a ajus­tar" Amaro, contudo, afastou-se, rápido, até que chegou à porta de sua casa, onde estacou, disposto a defender a tranqüilidade doméstica. Má­rio o seguiu e, erguendo os punhos em posição de combate, prosseguiu nas ofensas, rixento, em que lamentava a perda de Zulmira: "Infame engana­dor, onde puseste a mulher que era minha felicidade e minha vida? Que­braste-me os sonhos, aniquilaste-me os ideais!... Homem ter­rível, que fizeste de mim? Sou apenas máquina de trabalho, sem fé e sem espe­rança!..." Em resposta, Amaro disse-lhe que não sabia de sua afeição por Zulmira e que nunca tivera a intenção de ofendê-lo. O diá­logo prosseguiu então, áspero da parte de Mário, com seu interlocutor na defensiva. (Cap. XVI, págs. 101 e 102)

 

15. Amaro roga auxílio numa prece - Havendo reconhecido a pessoa que o agredia verbalmente, Amaro revelou-lhe que só soubera de sua afeição por Zulmira quando os compromissos no matrimônio não admitiam qualquer recuo. Mário chamou-o de hipócrita e insistiu em que ele lhe roubara a única felicidade que esperava do mundo, a única felicidade que supunha ser apenas sua... Amaro, que vivia momentos aflitivos em seu lar, fi­xou triste sorriso e obtemperou: "E acreditas que eu seja feliz? Admi­tes no casa­mento apenas a exaltação dos sentidos inferiores? Crês que o homem consorciado deva encontrar na mulher simplesmente uma escrava? Amo em Zulmira a companheira e a irmã que me cabe proteger. Nem ela e nem eu encontramos na experiência conjugal a ventura das afeições cor-de-rosa, em que o desejo contentado é como a flor que morre num dia..." Dito isto, revelou que ele e sua segunda mulher estavam pade­cendo muito. Desde que seu filho caçula morrera, num acidente terrí­vel, sua casa tornara-se um espinheiro de sofrimento. Zulmira adoecera gravemente e ele mesmo continuava agoniado e desfalecente. "Saberias, porventura, o que seja a desdita de um pai que chora sem lágrimas, mortalmente ferido?", indagou-lhe Amaro. "Se dívidas possuo para com a Divina Providência, podes acreditar que não tenho amargado pouco, a fim de ressarci-las... A morte para mim não passaria de bênção liber­tadora." Feito esse desabafo, o infeliz rogou ao enfermeiro com­preensão e ajuda. Se ele lhe fizera algum mal, que o perdoasse... Má­rio Silva, para espanto de André Luiz, retribuiu com escandalosa gar­galhada: "Desculpar? Nunca! Pelo tom da conversa, concluo que a jus­tiça começou a expressar-se, devidamente, mas abreviá-la-ei com as minhas próprias mãos... Meu desforço é certo, meu ódio é inexorá­vel!..." Amaro não revidou, nem respondeu, mas baixou a cabeça em ora­ção fervorosa. Suaves irradiações de esmeraldina luz escapavam-lhe, então, da fronte, e as palavras inarticuladas de que se servia, para implorar socorro, alcançaram o grupo socorrista que a tudo via, qual se fossem ondas caloríferas e harmoniosas de humildade e confiança. O enfermeiro, incapaz de sensibilizar-se, prosseguiu gritando, e Clarên­cio resolveu que era hora de ajudar, respondendo à rogativa de Amaro. (Cap. XVI, págs. 103 e 104)

 

16. Mário rememora seu passado com Lola e sua morte - Depois do es­forço de autocondensação, para o necessário ajuste vibratório, Clarên­cio abei­rou-se dos dois amigos, com o amoroso poder que lhe era caracterís­tico, e Mário associou sua presença ao pesadelo da véspera, passando a clamar: "Meu caso não é com a polícia!... não precisamos de qualquer delegado aqui!..." O Ministro pediu-lhe calma e informou que ali es­tava para que ele recordasse o passado. E, situando a destra na fronte de Má­rio, este se aquietou, de repente, acusando estranha meta­morfose. O enfermeiro estava agora mais elegante, mais jovem e, depois de alguns momentos, exclamou, semi-aterrado: "Ah! agora!... agora me lembro!... Meu agressor de ontem é Leonardo Pires... Como poderia es­quecê-lo as­sim tão infantilmente? como não rememorar? Disputávamos a mesma mul­her... Achávamo-nos em Luque, quando conheci a cantora e bai­larina ad­mirável... Lola Ibarruri! Quem senão ela poderia oferecer-me o bálsamo do esquecimento?!" E Mário, transmudado em Esteves, prosse­guiu em suas reminiscências: "Realmente fiz tudo para separá-los... Ele não era o tipo de homem capaz de fazê-la feliz! Lola trazia con­sigo a beleza, a juventude e a arte reunidas e eu carregava no peito o esquife dos son­hos mortos... Deu-me o repouso de que minhalma necessi­tava... restau­rou-me. Mas... que domingo terrível aquele da praça em­bandeirada, em Piraju!... Deslocavam-se as forças para a caça ao ini­migo... Imagi­nava, porém, a melhor maneira de reencontrar a mulher querida e, na­quela manhã de terrível memória, consegui a simpatia de Frei Fidélis, antes da missa... O caridoso capuchinho auxiliar-me-ia, advogando-me a causa... Lola não deveria movimentar-se, entretanto, poderia, por minha vez, tornar à retaguarda!... Os maiorais eram meus amigos!... Obteria, por isso, o favor do Príncipe!..." Mário rememo­rou, então, o crime de que ele fora a vítima: "Arquitetava meus pla­nos, quando encontrei Leonardo... Não supunha conhecesse ele a deser­ção da companheira e procurei agradá-lo, aceitando-lhe a companhia... O sucu­lento repasto exigia algum trago de vinho e Pires não hesitou, minis­trando-me o veneno que trazia às ocultas!...Ah! bandido! ban­dido!..." Dito isto, Mário levou as mãos à garganta, como se aí re­gistrasse enorme sofrimento e caiu, desamparado, gemendo de dor. Cla­rêncio o so­correu com recursos magnéticos balsamizantes e ele levan­tou-se, atur­dido. Amaro, que estava igualmente transtornado, acompa­nhava a cena com manifesta aflição. Parecia que ele nada entendia dos fatos que acaba­vam de ser relatados. (Cap. XVII, págs. 105 e 106)





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